No ciclo litúrgico da Igreja, o eterno retorno, tão necessário, da Quaresma se efetiva também esse ano. Um tempo de exercitação, subida, preparação, mobilização para chegar a uma meta essencial na vida cristã: a páscoa do Senhor. A Quaresma não está em função de si mesma. É tempo de preparação. Não dá pra ficar do mesmo jeito quando se leva à sério o cristianismo enquanto seguimento de Cristo, mas a conversão é um elemento fundamental, vital: é sintoma de vida. Para tal conversão (mudança de mentalidade, mudança de rumo, retomada da radicalidade evangélica) é preciso alguns cortes, amputações dolorosas, porém libertadoras. Pode ser para alguns, um remédio necessário; para outros um fortificante para aumentar a robustez. Para outros ainda, trata-se de uma oportunidade formidável para alimentar virtudes, iluminar a inteligência (nas poderosas asas da fé e da razão), um necessário treino para a vontade.
Não poucas vezes, o tempo quaresmal, tempo de fortalecimento do cristão, é visto como um momento triste e até frustrante (quantos propósitos que vão se enfraquecendo no meio do caminho....!!!????). Nada mais errado para pensar. Com certeza, um período exigente! Com certeza, tempo de treino! Sem dúvida, uma etapa do ano em que a peleja, a luta contra o mal são elementos que exigem esforço e determinação em vencer-se. Isso mesmo vencer-se! Tantas vezes as pessoas pensam que a luta é contra os outros ou contra as estruturas, etc. É uma luta para haver uma transformação interior que, depois, pode e deve se expandir, transbordar. Não vale ser comodista, nem egoísta ou apegado a si, aos outros, a projetos pessoais ou às estruturas. Portanto, é preciso haver coragem, renúncia e disposição. Mas, não é bom ficar olhando ou dando aquela importância à dificuldade ou à dor em si. Quem assim o faz, dispersa forças e corre o risco de idolatrar o sofrimento. Não se deve negá-lo, claro, mas ela/ele (a dificuldade, o problema ou o desafio) fazem parte do processo, são ponto de passagem e nunca o ponto de chegada. Assim sendo, vale à pena dar passos olhando para a meta e não para os desafios e dores para atingi-la.
Quarenta dias viveu Jesus no deserto, preparando-se para a sua missão, deparando-se com as lutas contra o mal, ouvindo o Pai, encontrando-se consigo mesmo. Mortificado, penitente, voltado para o essencial. Silêncio, solidão, simplicidade! O deserto assusta. No deserto se ouve a própria voz interior, tantas vezes abafada por tantos barulhos, por tantos gritos. É mais fácil e cômodo para o orgulho humano não ouvir ou descobrir coisas incômodas ou verdades dolorosas para o próprio ego. No silêncio e na solidão pode-se ouvir a voz, os apelos da Palavra, viver um encontro que destrói as ilusões, dissipa as névoas espessas das vaidades. Um novo homem, uma nova mulher pode surgir nesta capacidade inusitada de não perder-se escolhendo-se de forma egoísta e distorcida. Lá no deserto quaresmal nos é dada a possibilidade de uma mudança, de uma retomada do caminho que é Cristo e uma consolidação deste trilhar neste caminho os passos da liberdade genuína.
Quaresma.... que seja uma quarentena de uma corajosa capacidade de trilhar, no deserto, um itinerário de liberdade.
Boa quaresma para ti, Filoteu!