Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo, segundo Marcos – Naquele tempo, 12E logo o Espírito o impeliu para o deserto. 13Aí esteve quarenta dias. Foi tentado pelo demônio e esteve em companhia dos animais selvagens. E os anjos o serviam. 14Depois que João foi preso, Jesus dirigiu-se para a Galiléia. Pregava o Evangelho de Deus, e dizia: 15“Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência e crede no Evangelho.” – Palavra da salvação
Jesus vai para o deserto, impulsionado pelo Espírito Santo. O deserto é lugar inóspito, uma experiência de vazio, de silêncio e solidão. Não é lugar do sossego e da acomodação, mas espaço da escuta, do encontro consigo mesmo e com Deus. Quem é conduzido pelo Espírito de Deus não poderá viver “em paz” por muito tempo. O Senhor veio nos trazer a paz, mas não veio nos deixar em paz. Não é lugar de sucesso (pois não tem platéia para aplaudir), não é lugar da abundância e de seguranças (não há nada lá para se apegar). Por mais que seja lugar onde a plenitude pode ser vivenciada, o deserto é espaço onde a provação acontece por ser morada dos demônios. Marcos não descreve os embates entre Jesus e os demônios, como fazem os outros evangelistas (dos sinóticos), mas nos leva a entender que a proposta do mal foi feita. Satanás, personificação do mal propõe o mal disfarçado de bem. Um bem aparente recheado de gratificações e vantagens, facilidades e fantasiosas certezas, relativismo e egoísmos de toda natureza, mas que geram vazio, tristeza e escravidão. No caso de Jesus, não se trata de um Jesus tentado a fazer um pecado e ter resistido, mas trata-se acima de tudo do sim de Jesus à sua missão.
O reino de Satanás deve ser vencido por uma opção que se toma, por uma luta que se trava só na medida em que alguém se engaja pelo Reino da verdade, da humildade, da retidão, da pureza, finalmente pelo Reino de Deus. A potência do mal será quebrada na medida em que recebemos a comunhão com Deus em Cristo.
Ao referi-se aos animais selvagens, Marcos nos lembra Adão no paraíso que convivia com os animais selvagens. Mais para frente, Isaías e Oséias nos lembrarão essa ideia (ver Is 11, 6-8; 65, 25. Os 2, 18). Adão é, no paraíso, senhor de todos os animais (ver Gn 1, 26). Jesus, novo Adão, restabelece essa situação paradisíaca da comunidade de paz entre o homem e os animais selvagens. Além disso, a presença somente de animais selvagens (não havia animais nem domésticos) não dá a entender que o Senhor estava sozinho no deserto. A situação dos anjos que serviam Jesus é símbolo para expressar a comunhão restabelecida entre Deus e os homens, além de provar a existência deles. Tal serviço angélico evoca a proteção de Deus descrita no Sl 91, 11-13.
Os quarenta dias que Jesus viveu no deserto nos remetem aos quarenta anos de caminhada do povo de Israel no deserto e nos apresentam o sentido do nosso deserto quaresmal, feito de uma exercitação mais intensa na prática do bem, na renúncia ao mal, nas abstinências até de coisas lícitas para sermos capazes de renunciar às ilícitas. O Espírito Santo, através da liturgia da Igreja, nos introduz neste tempo forte e nos convita a viver esta solidão habitada pela Trindade para vencermos as tentações.Trata-se de um caminhado a ser trilhado rumo à terra prometida, no caso cristão, da páscoa. Mesmo no tempo da provação, o justo terá uma indescritível presença de Deus. A vitória de Jesus marca o fim da dominação de Satanás e o início dos tempos da salvação, uma primavera inaugurada pela paixão, morte e ressurreição do Divino Redentor.
Por fim, o evangelho nos fala da conversão: “Convertei-vos” (“metanoiete”), isto é, refazei a vossa mente, invertei os critérios mentais da vossa vida. Não se trata de melhorar ou apenas corrigir a vida. Trata-se de algo mais profundo: é preciso recolocar Deus no seu lugar central, fazendo dele nosso centro gravitacional. Uma mentalidade, uma visão de mundo, da vida à luz de Deus e do Evangelho. A relação plena com Deus não deve ser entendida como uma conversão moralista e legalista. Não é tão somente ou meramente um bando de leis a serem cumpridas ou pecados a serem evitados! As leis e mandamentos, preceitos e conselhos são caminhos de liberdade, fonte de vida, mas dentro de uma ótica de amizade com Deus, vida na graça: “Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1:17-18). É permanecer unidos a Cristo como o ramo está ligado à videira (ver Jo 15). Antes de cumprir preceitos e regras a descoberta de Deus é fundamental, é alicerce, é base. Se essa ordem não for respeitada, viveremos apenas do cumprimento de leis e no final das contas, no sentiremos empregados de Deus, não seus filhos. Não foi essa a atitude do irmão mais velho do filho pródigo quando reclamou do pai um cabritinho para comer com seus amigos? (Ver Lc 15, 29). Ora, essa é uma mentalidade de quem não entendeu nada do amor do Pai. E o que é viver no amor do Pai? Com certeza não é apenas ser um fulano “certinho”, mas um alguém que vive na plenitude esse amor, quer dar-se mais e mais, pois o “amor não sabe calcular” como dizia Santa Teresinha do Menino Jesus. Essa plenitude é bem expressa quando o Pai responde: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu” (Lc 15, 31). O cristianismo não é mercadoria comum: A santidade é fruto de uma comunhão com Deus, de uma união com Cristo que, no poder do Espírito, permite ao cristão viver a radicalidade da vida nova, transformada, aberta a viver o espírito das bem-aventuranças. Afinal, “o mundo não pode ser transfigurado e oferecido a Deus sem o espírito das bem-aventuranças", como nos afirma o Concílio Vaticano II.
Deus te abençoe, Filoteu de Betânia e te faça forte nas tentações para venceres com Cristo!