O que significa receber o Reino de Deus como uma criança? (ver Mc 10, 14)?
Caro Filoteu.
Hoje escrevo e posto algo sobre a pequenez, a simplicidade das crianças. Um tema exigente, nem um pouco sentimental ou sentimentalóide, como alguns pensam que seja (ou querem que seja?).
As crianças dependem de seus pais, confiam neles, deles recebem dons. Acolhem com alegria estas dádivas, fazem festa. As crianças são simples, sinceras, não fingidas, superam os conflitos com mais facilidade (brincam e até chegam a brigar, mas logo voltam a brincar, como se nada tivesse acontecido!!! Esperneiam um pouco ou muito com o que o pai quer, mas depois, lá estão todas amorosas nos braços do papai). Santa Teresinha do Menino Jesus, no seu último bilhete (destinado ao Pe. Bellière), escrito em 25 de agosto de 1897 exclama:
Não posso temer um Deus que se fez tão pequenino por mim.... Amo-o! Pois ele é só Amor e Misericórdia!
Jesus, com certeza, não pede aos adultos que sejam imaturos, impruden-tes, que se percam em detalhes ou deixem de ser racionais e cheios de bom senso para enfrentar certas questões. Jesus, no entanto, quer que os seus discípulos de todos os tempos sejam confiantes, abandonados em Deus, sem necessidade de se impor sobre os outros, sejam puros, inocentes (não ingênuos), generosos, espontâneos, alegres. No coração de criança existe uma humildade profunda que faz do cristão um alguém desarmado, sempre aberto para todos, disposto a construir pontes, demolir muros, refazer e reatar laços de amor que antes se romperam. Não se trata de um indivíduo tolo, mas sem malícia, desprendido de si, sinceramente disposto e desejoso de ser-com-os-outros de modo a viver uma sadia necessidade de caminhar junto com os demais. Claro, sem viver dependências e parasitismos aviltantes. Este ser-com-os-outros é alicerce sadio e salvífico na formação da individualidade amadurecida que brota de uma identidade bem definida na boa vivência do mundo das relações.
No coração de criança não haverá espaço para atitudes e mentalidade individualistas. A socia-lização e busca dos pares entre crianças é algo espontâneo, natu-ral, sem orgulhos ou vaidades que levam à exclusão da diferença ou dos menos favoreci-dos. Bastar-se de forma egocêntrica é sempre uma forma concreta de viver um egoísmo esterelizante, fonte de todos os males.
Quem tem o coração de criança é pobre, é pequeno. Não é um alguém ambicioso ou ganancioso: sabe partilhar o que se é e o que se tem. Não vive preocupado, mas está sempre ocupado; vive intensamente o momento presente, sem ser refém de traumas passados, nem se deixa aprisionar com os medos do futuro. Elabora tudo na ótica da gratuidade do amor misericordioso do Pai. A modéstia, brotada de uma humildade sincera (e não daquelas
humildades falsas e aparentes que trazem embutido um complexo de inferioridade ou mesmo uma necessida-de de ser vítima ou herói), não deixa a vaidade criar raízes, nem mesmo se insinuar ao coração. Com efeito, a verdade de ter recebido tudo o que se tem e o que se é, faz deste cristão uma pessoa pacata, pacífica, desprendida, despretensiosa, avessa ao estrelismo, ao exibicionismo, sem as patéticas necessidades de aprovação ou reconhecimento. Saber passar despercebido, permanecer oculto até mesmo suportar o desprezo e demais humilhações será um itinerário de crescimento pessoal e cristificação, além de profunda liberdade interior. Amar o
silêncio, o escondimento e a vida oculta não significa omissão ou covardia, falta de firmeza ou determinação. O humilde espera e confia em Deus; logo, não viverá a fuga das responsabilidades, assumirá os cargos e obrigações que lhe forem confiados como servidor generosa e totalmente comprometido com o verdadeiro bem dos que lhe foram confiados. não será um populista, um mendigo de afetos e atenções. Ao invés, será um dedicado guia, uma autoridade respeitável mais pelo testemunho e pleo exemplo do que pelas belas palavras ou comoventes exortações que vier a falar. Saberá dizer não sem complexos de inferioridade, de culpa ou medo das consequências. Saberá dizer sim se isso contribuir para o efetivo crescimento da pessoa que lhe pede algo. Saberá obedecer, colaborar, facilitar o processo, sem complicar o que é simples e simplificando o complicado.
"Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o Reino dos Céus" (Mt 5, 3)
Eis a primeira das bem-aventuranças. A síntese de todas. Caminho de liberdade genuína, de verdade libertadora e de felicidade sem fim. Caminho dos pobres, dos pequenos, dos simples, dos descomplicados, dos que se parecem com as crianças.
Mais uma vez a santa da infância espiritual nos ajuda. Não dá para falar sobre essa assunto e não citá-la! Tanto é, que foi proclamada doutora da Igreja. Em uma carta de 18 de julho de 1897 ao Pe. Bellière, seu irmão espiritual, a santa afirma:
Quando tiver chegado ao porto, vou ensinar-vos, irmão querido de minha alma, como deveis navegar no mar tempestuoso do mundo com o abandono e amor de uma criança que sabe que seu Pai a quer bem e que não poderia deixá-la sozinha na hora do perigo. Ah! como gostaria de vos fazer compreender a ternura do Coração de Jesus, aquilo que ele espera de vós...
Acho que não precisa de comentar o que a santa diz.
Um abraço e bênção para ti, Filoteu!
