Ele desceu à mansão dos mortos. Assim professa a fé da Igreja. No sono da morte, Cristo desperta na mansão dos mortos e vive uma experiência muito particular, comunicando a vida, a vitória de sua cruz.
Há um texto que reproduzo aqui para a reflexão pessoal. Depois prosseguiremos.
A descida do Senhor à mansão dos mortos (do século IV).
Que está acontecendo hoje? Um grande silêncio reina sobre a terra. Um grande silêncio uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei está dormindo; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque o Deus feito homem adormeceu e acordou os que dormiam há séculos. Deus morreu na carne e despertou a mansão dos mortos.
Ele vai antes de tudo a procura de Adão, nosso primeiro pai, ovelha perdida. Faz questão de visitar os que estão mergulhados nas trevas e na sombra da morte. Deus e seu Filho vão ao encontro de Adão e Eva cativos, agora libertos dos sofrimentos.
O Senhor entrou onde eles estavam, levando em suas mãos a arma da cruz vitoriosa. Quando Adão, nosso primeiro pai, o viu, exclamou para todos os demais, batendo no peito e cheio de admiração: “O meu Senhor está no meio de nós”. E Cristo respondeu a Adão: “E com teu espírito”. E tomando-o pela mão, disse: “Acorda, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará”.
Eu sou o teu Deus, que por tua causa me tornei teu filho; por ti e por aqueles que nasceram de ti, agora digo: ‘Saí!’; e aos que jaziam nas trevas: ‘Vinde para a luz!’; e aos entorpecidos: ‘Levantai-vos!’
Eu te ordeno: Acorda, tu que dormes, porque não te criei para permaneceres na mansão dos mortos. Levanta-te dentre os mortos; eu sou a vida dos mortos. Levanta-te, obra das minhas mãos; levanta-te ó minha imagem, tu que foste criado à minha semelhança. Levanta-te, saiamos daqui; tu em mim e eu em ti, somos uma só e indivisível pessoa.
Por ti, eu, o teu Deus, me tornei teu filho; por ti, eu, o Senhor, tornei tua condição de escravo. Por ti, eu, que habito no mais alto dos céus, desci à terra e fui até mesmo sepultado debaixo da terra; por ti, feito homem, tornei-me como alguém sem apoio, abandonado entre os mortos. Por ti, que deixaste o jardim do paraíso, ao sair de um jardim fui entregue aos judeus e num jardim, crucificado.
Vê em meu rosto os escarros que por ti recebi, para restituir-te o sopro da vida original. Vê na minha face as bofetadas que levei para restaurar, conforme à minha imagem, tua beleza corrompida.
Vê em minhas costas as marcas dos açoites que suportei por ti para retirar de teus ombros o peso dos pecados. Vê minhas mãos fortemente pregadas à árvore da cruz, por causa de ti, como outrora estendeste levianamente as tuas mãos para a árvore do paraíso.
Adormeci na cruz e por tua causa a lança penetrou no meu lado, como Eva surgiu do teu, ao adormeceres no paraíso. Meu lado curou a dor do teu lado. Meu sono vai arrancar-te do sono da morte. Minha lança deteve a lança que estava dirigida contra ti.
Levanta-te, vamos daqui. O inimigo te expulsou da terra do paraíso; eu, porém, já não te coloco no paraíso mas num trono celeste. O inimigo afastou de ti a árvore, símbolo da vida; eu, porém, que sou a vida, estou agora junto de ti. Constituí anjos que, como servos, te guardassem; ordeno agora que eles te adorem como Deus, embora não sejas Deus.
Está preparado o trono dos querubins, prontos e apostos os mensageiros, construído o leito nupcial, preparado o banquete, as mansões e os tabernáculos eternos adornados, abertos os tesouros de todos os bens e o reino dos céus preparado para ti desde toda a eternidade”
Encantadora essa reflexão. Nosso pai Adão e os antigos patriarcas e reis são despertados pelo Senhor que desce às profundezas da morada dos mortos. É preciso descer com Ele para a nossa mansão dos mortos e deixar que Ele ilumine nossas cavernas e as profundezas do nosso ser.Que Deus realize essa obra e não tenhamos medo que Ele, tomando-dos pelo pulso nos faça descer. Ele descerá contigo, comigo, com cada um. Não ter medo da luz, não ter medo da verdade que liberta e salva. Mansão dos mortos para que haja ressurreição. Lá! Nas profundezas. Despertar para curar, despertar para salvar, lavar, purificar.
Sábado Santo. Um grande silêncio se instaura. Tudo se cala, tudo aguarda. A semente depositada na terra deve sofrer a transformação, no caso de Jesus, não da decomposição, mas da ressurreição. Uma expectativa, sem queimar etapas, sem atropelar os tempos. Algo acontecerá, pois a "esperança não decepciona" (Rm 8, 28). Todos os que creem não podem se posicionar diante da morte como se fosse um fim definitivo. A morte nunca será isso, mas uma passagem, uma páscoa. O Senhor morto pela crucificação vai lá nas profundezas. Nós também, chamados pelo Espírito Santo que fala pelo apóstolo Paulo, devemos entender o nosso papel: "pois morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus" (Cl 3, 3). Sepultados com Ele para com Ele ressurgir. Aqui está o mistério deste grande silêncio. Sim, é preciso morrer para viver. "Quem quer ir para o Céu?" - perguntou o padre na missa aos fiéis presentes. "Eu" - gritou o povo a uma só voz, levantando o braço com grande entusiasmo. Daí o presidente da celebração perguntou de novo: "Quem quer morrer?" daí ninguém levantou mais o braço e o povo ficou mudo. Aí está o paradoxo, o mistério pascal que nem sempre encontra abertura em nossos corações. Não falo aqui da morte física, da conclusão da peregrinação terrestre. Refiro-me à morte ao pecado, morte ao homem velho, à mulher velha que precisa acontecer a cada dia para vivermos uma vida ressuscitada. Diz com grande sabedoria o apóstolo Paulo:Romanos 6, 1-8
Que diremos pois? Permaneceremos no pecado, para que a graça abunde? De modo nenhum. Nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele? Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte? De sorte que fomos sepultados com ele pelo batismo na morte; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos, pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida. Porque, se fomos plantados juntamente com ele na semelhança da sua morte, também o seremos na da sua ressurreição; Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado. Porque aquele que está morto está justificado do pecado. Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos
O sepultamento de Cristo é uma imagem forte e eloquente deste mistério. Seja-nos dado vivê-lo sem medo, na perspectiva da ressurreição. Faremos companhia a Maria, em sua solidão desconcertante, à Virgem solitária e triste, nossa homenagem e nossa amorosa veneração filial por sua espera confiante e sua doação sem igual a Cristo.
Um abraço para ti, caro Filoteu de Betânia.